Caso Miguel: se MPPE não mudar tipificação, crime ficará impune


Uma decisão delicada a ser tomada nos próximos dias pode ser decisiva para o destino do inquérito sobre a morte de Miguel Otávio da Silva, de 5 anos. Caberá ao Ministério Público de Pernambuco(MPPE) avaliar as provas do inquérito, que será encaminhado pela Polícia Civil e decidir se denuncia Sarí Corte Real por homicídio culposo ou doloso.

Se o Ministério Público decidir denunciá-la por homicídio doloso ela pode ser levada à julgamento, mas se for mantida a acusação de homicídio culposo, a impunidade vai prevalecer, o indiciamento não vai dá em nada, ela não vai dormir um dia sequer na cadeia e a morte do garoto não vai encontrar justiça. E vários fatores contribuem para isso.

Em primeiro lugar, a família é poderosa, influente e com certeza vai se cercar de advogados igualmente poderosos e competentes para atuarem na defesa da indiciada. Por outro lado, a pressão sobre o delegado que está com o caso vai ser grande para que ele não “carregue nas tintas” na hora de concluir o inquérito, mantendo a tipificação, como já o fez, em homicídio culposo. E tem mais: com o simples fato de ser anunciado o promotor que vai ficar com o caso – e que pode denunciar a acusada por homicídio doloso – a pressão nos bastidores vai se voltar para ele e/ou para o procurador-geral do Estado, com o objetivo de “amansar” o inquérito. Há, ainda, a pressão que certamente será exercida já antecipadamente no nível dos juízes e desembargadores para a amenização do peso da carga jurídica no processo. Em todos os casos e aspectos, a pressão virá de cima e muito forte, sempre atuando em todas as frentes, para livrar a acusada. A seguir nesse caminho já traçado, para os advogados da acusada, vai valer o tradicional linguajar jurídico: como provam os autos do processo.

Aqui, caberá aos advogados da família do garoto expertise, astúcia, mas também influência para trabalhar num caso que com certeza vai ser muito complicado e cruel, sobrando para a família do garoto morto tão somente a lembrança, a saudade e a frustração de uma justiça falha, tardia ou inexistente. 

Logo para começar, o delegado titular do caso, Ramon Teixeira, autuou em flagrante a patroa da mãe do garoto, Sarí Corte Real, por homicídio culposo, imputando a ela apenas o pagamento de uma fiança que “estipulou” a vida do garoto no valor de R$ 20 mil. Segundo ele, a suspeita foi negligente por deixar Miguel usar um elevador sozinho, mas não teve a intenção de matá-lo. Não ter intenção é uma coisa, mas concorrer diretamente para o fato é outra completamente diferente. Ao liberar o garoto sozinho no elevador, ela concorreu para todos os riscos e possibilidades possíveis e resultantes da sua ação que, no apertar daquele botão do elevador, selaram a vida – ou a morte – daquele anjinho.

O fato é que, se o Ministério Público não denunciar a ré por homicídio doloso (quando há intenção de matar) e for mantida a acusação de homicídio culposo (quando não há intenção), pouca coisa pode mudar na vida da acusada. Além do fato de que todo o processo ainda dependerá da interpretação do juiz, se for mantida a acusação por homicídio culposo, a pena para esse crime é de até três anos de detenção. Na prática, a Justiça pode decidir que Sarí Corte Real deve prestar serviços à comunidade, por exemplo, tudo ficar exatamente como está e a Casa Grande continuar subjugando a senzala.

O inquérito ainda vai seguir para o MPPE e o promotor de Justiça responsável irá analisar provas materiais e depoimentos. Caberá a ele decidir se denuncia Sarí Côrte Real por homicídio culposo ou doloso. Especialistas afirmam que o promotor pode, sim, interpretar que a patroa da mãe de Miguel agiu com dolo eventual, pois uma criança daquela idade jamais poderia estar sozinha em um elevador. Na visão dos criminalistas, ela era responsável pelo menino naquele momento, deveria ter impedido a ação ou ter o poder de impedir, o que não fez porque estava com um serviço de manicure no apartamento, “fazendo as unhas”. Caso o promotor decida denunciar por homicídio doloso, Sarí Corte Real poderá ser levada à júri popular. Neste caso, a pena pode chegar a 20 anos de prisão. Aí sim, a situação da patroa poderia mudar e ela teria que passar boa parte da sua vida fazendo as unhas na cadeia.

Curiosamente, nesta sexta-feira(5) a patroa encaminhou uma carta à mãe do garoto, na qual se “solidariza” com o sofrimento da empregada. Na carta, entre outras coisas, ela diz: “Como mãe, sou absolutamente solidária ao seu sofrimento. Miguel é e sempre será um anjo na sua vida e na sua família”, para em seguida pedir perdão à mãe. “Não tenho o direito de falar em dor, mas esse pesar, ainda que de forma incomparável, me acompanhará também pelo resto da vida”, sentenciou ela, certamente reconhecendo a grande desgraça para a qual contribuiu diretamente.

Há de se notar alguns detalhes no mínimo interessantes no bojo da divulgação dessa carta. Para começar a carta foi divulgada pelo advogado da família de Sarí Gaspar Corte Real, Pedro Avelino. A carta foi cuidadosa e estrategicamente elaborada para também gerar comoção e entregue à imprensa, sem nenhum pronunciamento presencial da acusada. A comoção é do tipo “ela também está muito abalada emocionalmente”. Por outro lado, o advogado disse que “vai se pronunciar quando as investigações forem concluídas”. Ou seja, a parte da acusada adota a velha tática do silêncio e diz esperar a conclusão das investigações, certamente enquanto trabalha nos bastidores para manter a acusação de homicídio culposo. Em resumo, a “comoção” da acusada é show para a plateia assistir enquanto fica de boca aberta e serve bem mais como uma verdadeira cortina de fumaça. Comoções à parte, business is business sentenciam os advogados.

O governador Paulo Câmara(PSB) anunciou hoje nas redes sociais que “a investigação e esclarecimento do caso “devem acontecer no prazo mais breve possível”. É importante que se registre que o governador é do mesmo partido do prefeito de Tamandaré, Sérgio Hacker, que é esposo da acusada. O governador disse ainda que “a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Estado já entrou em contato com a família da criança e vai acompanhar o caso”. Reza uma crença no universo político que diz que quando uma gestão não quer fazer ou resolver exatamente nada com relação a alguma coisa, então cria logo uma comissão. Resta saber para que lado a balança do governador e do governo vão pender e se ele vai “entregar” a esposa de um correligionário de seu partido à justiça ou se vai continuar fazendo um dos esportes que mais gosta de praticar que é a cara de paisagem.
     
CULPOSO OU DOLOSO – Mudanças na tipificação de crimes não são incomuns quando o inquérito chega às mãos do MPPE. Um exemplo, guardadas as devidas proporções, foi o caso do processo relacionado à morte do estudante Edvaldo da Silva Alves, de 19 anos, no município de Itambé, na Mata Norte do Estado. Os policiais militares envolvidos na morte foram indiciados pela polícia por homicídio culposo (sem intenção de matar). No entanto, o promotor responsável pelo caso interpretou que se tratou de um homicídio doloso (com intenção) e denunciou os dois PMs. A Justiça também confirmou esses indícios e decidiu que os militares deveriam ir a júri popular. 

Outro caso emblemático foi o acidente provocado pelo empresário Alisson Jerrar, em Boa Viagem, Zona Sul do Recife, em dezembro de 2008. Ele estava bêbado e furou o sinal vermelho, batendo em outro carro. O acidente resultou na morte de uma técnica de enfermagem. Na época, até então, casos como esse eram tipificados como homicídio culposo. Mas o delegado João Gustavo Godoy interpretou que se tratava de homicídio doloso, já que o empresário assumiu o risco de dirigir embriagado. O empresário foi condenado pela justiça. 

Será que agora, mesmo com o delegado tipificando o crime como homicídio culposo, o Ministério Público irá mudar para homicídio doloso? A culpa e o dolo estão mais do que formados, já que a morte de um inocente poderia ter sido plenamente evitada. 

Resta agora saber da coragem e decisão da justiça pernambucana. O resto é filigrana jurídica.

Ou, então, anote: se o homicídio for tipificado como culposo, tudo vai dar em nada e vai valer, mais uma vez, a força dos poderosos da Casa Grande para mais uma vez subjugar os serviçais da senzala.

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